12/8/2013 - Piracicaba - SP
da assessoria de imprensa da Câmara de Vereadores de Piracicaba
E agora, José? E agora, você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José?
O que faz José Segalli ser um Zé não é o nome ––o mesmo de seu pai, com a diferença de carregar o "Filho" no final––, mas ser um número. Não desses que ele coleciona desde que nasceu (65 anos, um casamento, cinco filhos, 78 quilos, cinco anos sem fumar), mas daqueles que se veem nas estatísticas.
Hoje morando num cômodo alugado, José Segalli Filho já sentiu na pele o que é viver na rua.
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho. O divórcio da mulher, em 1990, foi o divisor de águas em sua vida. Perdeu o emprego na Dedini (porque saía em horário de serviço para seguir os passos da esposa), perdeu o imóvel onde morava, perdeu o contato com quase todos os filhos. "Cheguei a ter casa no Nova Piracicaba! Com a desavença na família, vendi tudo e reparti em sete partes iguais: eu, a mulher e os cinco filhos. Ficou todo mundo a ver navios. Eu joguei fora aquele imóvel, que hoje valeria uns R$ 500 mil. Hoje não tenho nem um terreninho de 15 por 10; a casa era o único bem que eu tinha." E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. Desde então, o homem que leva na carteira de trabalho passagens pela ArcelorMittal e União Veículos variou a maior parte do tempo entre a informalidade e os bicos ––o último emprego com registro foi há mais de cinco anos, na Limpadora Paulista, "da dona Maria Helena". Tem conseguido alguns trocados como pedreiro, mas já são duas semanas sem uma moeda no bolso. "Estou paradão, sem emprego. Se você passou dos 60 anos, já não tem mais." A esperança é ser contemplado com o benefício de assistência social ao idoso e ao deficiente, regulamentado pela LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social). Assim, teria a garantia de receber um salário mínimo todo mês. E agora, José? E agora, você? Os papéis estão parados na Previdência Social. Deu entrada na agência de Santa Bárbara D´Oeste ––"dizem que é mais rápido lá"–– e agora aguarda com o protocolo nas mãos. "Estou esperando vir essa aposentadoria. Não tenho renda nenhuma. Nada, nada, nada." Mas topa fazer qualquer serviço, até porque saúde tem ("Ah, graças a Deus!") e vontade de trabalhar, também ("Nossa!"). Com a chave na mão, quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Depois do divórcio, preferiu morar sozinho. "A família teve problemas e foi cada um por si." O único filho partiu para o Rio Grande do Sul, enquanto as filhas permanecem em Piracicaba ––a cidade escolhida para viverem o mais distante possível do pai. "Tem uma que, devido ao preconceito comigo, já faz uns dois anos e meio que não vejo, por causa do sentimento entre um e outro." A mais velha é a exceção. Quando a situação do pai apertou ––e foi mais de uma vez–– ela lhe deu o dinheiro para pagar o aluguel do quarto onde mora. "Eu fui pedir o dinheiro para ela, não falei duas vezes: ela pegou e deu, eu já fui buscar. Eu quis pagar, ela não quis receber." Mas não quer ficar de novo nesse estado. "Nunca fui dependente, Deus me livre. Não quero atrapalhar. É chato, né? Vou para lá, para cá, me viro com os bicos. Por isso é que torço por essa ajuda, cairia do céu. Um salário mínimo daria para eu pagar o aluguel certinho. E o rango estaria garantido, né?" Já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode. Por sorte, não gasta dinheiro com remédios; por falta de hábito, nunca bebeu; e, por recado do destino, já não fuma. "Acabei de medir a pressão, está normal, 13 por 8. Fiz exame dois meses atrás e não tinha triglicérides no sangue, tinha só pouquinha coisa de açúcar." Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José! Ganhou saúde quando parou com o cigarro, em 2008. "Hoje eu peso 78 quilos. Quando fumava, eram 60. Passei 40 anos fumando e parei porque tive blastomicose no pulmão, devido ao cigarro. Fiquei 35 dias internado na Santa Casa, entre a vida e a morte. Aí, sarei e, de lá para cá, nunca mais fumei." Com dentadura desde que um acidente de moto, quando estava com seu pai, o obrigou a arrancar a maioria dos dentes, só carrega uma vaidade: "Não bebo, não fumo, não faço nada de errado. A única coisa que eu tenho de capricho é deixar o cabelo comprido. Eu gosto de rock and roll, né? A vida inteira ouvi Led Zepellin, Creedence, Motorhead, Nirvana, Pink Floyd, AC/DC... Sempre fui roqueiro e trabalhador." Também é, "como se diz", cristão. "Acredito em Deus, mas não sigo nada." Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde? Porém, sem dinheiro, como faz para jantar, tomar café da manhã? "Não tomo. Vou ali na rua Voluntários, tem o Fome Zero por R$ 1. Ou no Piracicamirim, onde tem algumas mulheres que dão comida. Às vezes, elas ficam bravas, mas eu falo: "Não tenho para onde ir!". Roubar eu não vou, nunca fiz isso. Meu pai passou uma boa educação para nós; não deu herança nenhuma, mas deu uma boa educação." E já pediu dinheiro na rua? "Não, Deus me livre, de jeito nenhum. Nem quando tenho fome eu tenho coragem." E já morou na rua? "Na rua, já. Nossa! No Itaú, ali na praça José Bonifácio, fiquei dois meses. Chegava lá, dormia e levantava às 6 horas da manhã." Só tinha o diminutivo e o aumentativo para o acompanharem. "Já passei por isso, não é brincadeira, não. Era uma mantinha e um papelãozão." A noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia. Colocava a "mantinha" na mochila, logo cedo ––quando "os guardas do banco já vinham expulsando: "Vamos, vamos, vamos"––, e embalava o "papelãozão" para ser guardado pelo "seu Rufino", um senhor "lá da rua Treze de Maio". Depois, à noite, passava de volta pegar o "papelãozão", que seu Rufino deixava no portão, e voltava para o chão gelado em frente ao banco. "Não era fácil, não." E tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou. E agora, José? Hoje, depois de ter crescido no São Dimas e morado na Vila Rezende, na Nova Piracicaba e na rua, está há dois anos no Sol Nascente, num dos 11 quartos de uma pequena vila. Divide uma área de 4 por 4 metros com uma pia e um ser bem maior que tudo isso. "Moro sozinho; eu e Deus, só." Paga entre R$ 200 e R$ 220 de aluguel, "dependendo do quanto vem de água e energia", e alegrou-se quando, no mês passado, tudo ficou em R$ 185. Porém, "a coisa vem apertando" desde que ficou cinco semanas doente, tempos atrás, e agora, com a seca de serviços. "Venceu o aluguel desse mês. Eu pensava que esse rendimento vinha antes, mas vai demorar. E não entra serviço, não estão pegando." O último bico foi arranjado por um engenheiro mecânico, com chácara em Santa Olímpia. Ganhou R$ 220 por fim de semana para fazer reboco, piso e azulejo. "Estava me salvando a vida, mas depois lá terminou e o dinheiro acabou, né?" Nem o "temporal brabo", do mês passado, gerou algum chamado. "Falaram que ia aparecer bastante serviço, mas acabou também. É coisa pequena, que não dá para você pagar o que deve. E agora estou há duas semanas sem ganhar nada, nada." E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio ––e agora? E a comida? "A cada dia tenho que ver onde vou caçar. Se tem dinheiro, a gente não se preocupa: vai lá no Tempero Manero, que é baratinho, R$ 4,75 o prato econômico. Apesar de que R$ 5 todo dia, para quem está contando o níquel, é bastante. É difícil gastar R$ 5 hoje, amanhã e depois ––e são R$ 5 só no almoço, porque depois tem a janta, o café... Se a gente tem um rendimento, é uma maravilha, porque dá para controlar." Por isso, teve um sabor especial o macarrão com molho e salsicha servido nesta sexta-feira (9) na praça do Terminal Central de Integração. Alimentou a fome e também a esperança de reviver dias que hoje habitam apenas a memória. "Comer na sombra, sentado, uma "macarronadinha" é uma maravilha. É um tratamento que dávamos para os nossos filhos, na casa da gente, quando comíamos juntos. Faz tanto tempo que a gente não repete isso, né?"
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